LIBIDO ou: se o corpo é um templo, venera-o

Estará agora o leitor a espernear-se de insatisfação para com a falta de integridade de Maria da Luz, valente jovem de virtude verosímil que nunca se conformaria a tais situações imorais aos olhos do Todo-poderoso. Como é que uma personagem tão assexual se encontra rendida às membranas de um delinquente (comunista, diga-se de passagem)? Um sonho ilustrado pelo moço infernal? Tristes fantasias de um trovador solitário por uma protagonista inexistente? Um lapso na continuidade espácio-temporal? Não é o caso de todo. Conhecendo bem o autor, posso garantir que seria incapaz de criar tal transtorno propositado para satisfazer os seus próprios desejos macabros. A Verdade – que só eu poderei relatar por ter sido o único presente a testemunhar o acontecimento – encontra-se numa abadia distante nos confins do esquecido.

A Verdade é que desde o nascimento da jovem, ergue-se a igreja dos Prazeres da Luz. Igreja esta, perdida nos desertos escarlates da inconsciência, que se mantém encarcerada desde muito. Encarcerada pelo desejo das Irmãs, que tinham como único desejo a perseverança do seu ritual interminável. Pois as Irmãs nunca dormiam. Mantinham as suas vestimentas encarnadas e organizavam-se em esquemas de quatro por seis onde veneravam e prezavam louvores à Santa do Tento e da Pureza. No entanto, o silêncio reinava. As Irmãs – todas elas de olhos vendados – ajoelhavam-se perante o Ídolo imóvel, levantavam-se, vertiam lágrimas em silêncio e voltavam à posição anterior. Não tinham nomes nem desejos nem opiniões nem postura. Máquinas. O resto mantinha-se imóvel. As paredes eram barro. A pedra vermelha corroía-se aos poucos consoante o passar dos anos embora fosse forte o suficiente para preservar a estrutura da abadia. Na realidade, não havia nada para derrubar as paredes que continham estes rituais teológicos. Não havia som nem vento nem controvérsia que sobrevoasse o céu escarlate. Havia ordem. Ordem suportada pelo desconhecimento e pelo medo do conhecimento mas havia ordem.

Pois torna-se claro que quando a mão do dito delinquente sobrevoa o estômago da tão nobre moça, os arrepios lançados até ao de cima criaram ventanias como nunca se tinha visto naquele deserto encarnado.


As árvores secas que rodeavam a abadia ardiam, tais eram as labaredas que cercavam a Igreja dos Prazeres da Luz. O fumo negro das árvores queimadas cercava o espaço mas as Irmãs não receavam. Eram cegas e nada podia impedir o seu ritual. Nem mesmo quando o chão começou a tremer e as falhas do edifício se alastravam pelas paredes. O estrondo era tão grande que a sua magnitude abriu fendas no chão de pedra e do chão emergia sangue. As Irmãs tentavam manter o balanço, nunca entrando em pânico. Nem mesmo quando o sangue já subia ao nível do tornozelo. E, consoante o alastramento das fendas, o sangue acabou por inundar a abadia de tal forma que encurralou as vinte e quatro senhoras dentro do edifício. A corrente tornou-se tão forte que despiu as Irmãs, rasgando as suas vestimentas, e alastrou-se pelos seus corpos nus até que eventualmente morreram todas afogadas num mar de sangue.

No final, caro leitor, sobrou ponta de um corno. Pedra de barro lapidada pela areia do deserto entre o carvão que outrora era árvore e duas dúzias de corpos que se deixavam arrastar pelo vento. E eu, que era uma pastilha elástica colada num banco da abadia. Mas seria isto carnificina? Talvez o amor mate, mas nunca um desastre natural gerou tanta gula.

TOSTAS MISTAS ou: partilhando lençóis com o bastardo do homem que vendeu a alma

- Maria, porque abandonaste tu os estudos?

- Suponho que podia ter aprendido o Teorema de Pitágoras para cortar as tostas mistas em triângulos perfeitos – exclamou Maria em tom de gozo – mas pela altura em que conseguisse realizar os cálculos todos, as tostas já estariam frias.

Nós, moscas, temos uma aptidão de espionagem invejável. Pairo por cima do calor irradiado por um par de corpos nus. No entanto, não sou detectado. Embora seja um espécimen formidável da mosca comum, Deus proíbe-me de chegar ao ponto de possuir aptidões paranormais ao ponto de ler mentes. Mas já andei por essas bandas; já fui jovem e despreocupado e mirabolante. Maria da Luz não esconde uma expressão sonolenta cosida na cara. Ela sente uma palma da mão morna no estômago que embalava a sua consciência. Fausto, por outro lado, fitava a jovem. A seus olhos aquela silhueta era uma visão de consolo abundante; um sonho; uma droga; uma cura. Algo que desconhecemos, mas que se sabe que temos de ter. Contudo, a perseguição do olhar de Fausto impedia a jovem de mergulhar na imensidão do sono.

- Então porque abandonaste tu os estudos?

- Fujo de uma maldição – suspirava Fausto enquanto rebolava a cara na direcção oposta – Ambos os meus pais morreram. Meu pai era doutor; minha mãe era apenas apaixonada pela vida. Todavia, o meu pai antes de morrer já morria de ganância e gula. Desejava sempre mais e morreu com os seus troféus na mão, sozinho. Eu realmente não sei o que é uma alma, mas sei que alguém com tanta indulgência de sua própria pessoa deve deteriorar aos poucos por dentro.

- E isso fez com que deixasses os estudos?

O que Maria não percebia era que o infame Doutor Fausto apanhou-se na busca por uma superioridade intelectual. Não bastava decorar a gramática básica que enfiavam nas cabeças dos académicos de medicina. É-se necessário saber mais. É-se necessário ser melhor. E a sua auto-destruição deveu-se à sua ambição de adicionar mais um «sapiens» a sua pessoa. E esta droga era tanta, que o filho ilegítimo do Doutor criou uma repulsa aos princípios do infame. Mas aí não existe uma reacção em cadeia complexa. A necessidade do adolescente se afastar dos princípios incutidos corre no sangue juvenil encardido de insolência. Mas pouco o jovem sabe da sua predestinação. Seja lá o que for uma alma, a de Fausto será colhida e violada nos confins da escuridão. E a sua droga encontrava-se colada na palma da sua mão morna. Fausto; perdido por uma Amazona do pântano. Se teu pai te visse agora, ó tu que te proclamas salvação de um degenerado. Mas não vê. Porque não é mosca como eu. Descansa agora, Fausto. Poucos têm o luxo de terem uma linha traçada com antecedência. Adormece com a tua perdição nos braços, porque o resto já não te pertence.

E foi isso que fez. Descansou a humidade dos seus olhos esbugalhados, não sabendo que se encontrava cego por uma das partidas mais velhas do destino.

AVANT-GUARDE ou: com um martelo numa mão e uma foice na outra, fico sem mãos para fazer algo construtivo

As pessoas percorrem o limiar da existência à procura de um propósito. Significado. Raison d’être. Gostam de fugir de rótulos mas na realidade sentem-se realizadas quando são catalogadas com títulos confortáveis na consciência. Mas isto sou eu; gosto de contar histórias. A Clara estuda. O Tio é jornalista e colunista. Realiza, portanto, uma grande parte do seu trabalho a partir do conforto de casa. Eu sou um pombo historiador. E Maria da Luz entrou na idade adulta sem um propósito reconfortante onde se pudesse abotoar. Portanto, ao grande desgosto de seu Tio que mantinha uma miragem de sua sobrinha como uma réplica literata de sua pessoa, Maria da Luz acabou por arranjar um posto como empregada de mesa no café Avant-Guarde que pertencia ao vizinho do prédio ao lado.

Servir mesas e reabastecer a dose de cafeína a meio mundo infeliz não era motivo de orgulho mas a humildade de Maria da Luz incapacitava a jovem de se atrasar para o seu turno diurno. O senhor Pascal era devidamente rigoroso com os seus empregados tendo em conta que também se encontrava por detrás do balcão dia sim, dia não. Contudo, Maria da Luz partilhava sempre o balcão com um moço. Tinha sempre um sorriso cerrado estampado, vestindo-se em trapos, escondendo a magreza do resto do seu corpo. Mantinha-se barricado no seu lado do balcão mas lançava tentativas de olhares amigáveis a Maria da Luz. Mais tarde ficou a saber que se chamava Fausto. Personagem peculiar. Era capaz de embaciar as janelas do estabelecimento só com fôlegos. No entanto, no dia em que realmente conseguiu abordar a sua colega encheu-se o peito de ar e perguntou em bandos de eufemismos se não queria acompanhá-lo a uma reunião da JCP. Maria da Luz nunca teve uma forte opinião política e lembrava-se da discussão que teve com o Tio sobre sanguessugas, tendo a vontade de ser um cérebro que puxasse para algum lado fazendo com que aceitasse aquele malabarismo de palavras.

Maria da Luz passou a semana seguinte de cama, adoecida de seja lá o que for. Febres de qualquer coisa. E enquanto ela se mantinha coberta de lençóis, o Tio distribuía a sua dieta de sopa e chá de gengibre. “Benefícios de trabalhar em casa” tornou-se a citação predilecta da semana. Maria da Luz gemia de desconforto. Não pelas dores nos abdominais, mas sabendo que estava de baixa e dispensada até que estivesse melhor. Mal o Tio se aproximava com mais um tabuleiro de sopa, Maria da Luz não resistiu em abordar o Tio:

- Tio, porque é que não somos mais acérrimos nos princípios Marxistas? – e continuou –Eu faço parte do proletariado e agora vejo como as minhas necessidades não são cumpridas e que deveríamos ser mais incentivados para uma maior produção a partir dum exercitação maior do Poder. Eu trabalho imenso e acho que devia receber o mesmo que outro trabalhador qualquer, tendo em conta que contribuímos todos para o mesmo.

Maria da Luz fez uma pausa para relembrar se o seu discurso estava tal e qual tinha praticado. Mas o Tio acabou por intervir antes que ela pudesse mencionar os ataques capitalistas que punham as pequenas e médias empresas umas contra as outras.

- Acho que devias ver uma coisa, querida.

Deu permissão a Maria da Luz para sair da cama pela primeira vez desde que tinha adoecido. Levou-a à janela e apontou para o apartamento que se escondia por detrás da árvore que espreitava o alpendre. Apontava exactamente para o apartamento do Senhor Pascal. Ela conseguiu facilmente reconhecer a cara pastosa do patrão deitada numa banheira cheia de água multicolorida.

- O que tu vês faz parte da rotina do Senhor Pascal. Todos os dias que ele não ajuda no balcão resultam em mais horas de trabalho para vocês. É também menos capital que entra no estabelecimento.

Maria da Luz evitava mostrar uma expressão incrédula à frente do Tio. Mostrar ponto fraco perante o Tio rebaixaria a única crença política que alguma vez conheceu.

- Querida, eu não estou a dizer que estás errada. Mas mentalizaram-te com princípios utópicos sem te dizerem algo muito importante: as pessoas só têm o seu melhor interesse em mente. E enquanto isso for, terás de trabalhar neste ambiente capitalista para que, um dia, possas engordar e tomar banhos perfumados como o Senhor Pascal.

E enquanto o Tio divagava em relação aos defeitos do Manifesto, Maria da Luz só pensava como o seu colega malabarista ficou sozinho no balcão a servir meio mundo infeliz. Pobre Fausto.

TRAÇAS ou: a ambiguidade da lâmpada é estranha e sabe a pouco

A esperança de vida de uma beata é bastante efémera (se é que podemos considerar “efémera” um adjectivo quantitativo). Mas é isso que sou. Uma beata. Nos meus últimos minutos de vida, o que é que eu vejo? Vejo o Tio aconchegado na sua poltrona a escapar mais um cigarro para a boca enquanto relê Virgílio. A Clara instala-se no chão, deitada, vidrada ao televisor e Maria da Luz encontra-se ao lado do Tio perplexa com o candeeiro que iluminava a vista do Tio. É um candeeiro sem abajur que o Tio mantinha sempre ao lado da poltrona para acompanhar o seu ritual de leitura.

A perplexidade de Maria da Luz veio com a chegada dos primeiros calores do Verão que - como costuma fazer todos anos – trazia consigo traças gordas que se encantam com o deslumbre do encadeamento do candeeiro sem abajur. Maria da Luz assistia àquele espectáculo tentando com os seus dedos magros alcançar uma das traças.

- Deixa as traças, querida – murmurava o Tio, não retirando o seu nariz das páginas do livro.

- Mas eu não compreendo – exclama Maria da Luz – elas seguem a luz, cabeceiam a lâmpada e retomam a fazer o mesmo.

- Acredita, querida, toda a gente faz isso.

E o Tio, mais uma vez, tinha razão. Eu sou uma beata mas sei. Uma pessoa estará sempre determinada a seguir uma ideia, um pensamento. É cativado pela luz da lâmpada. Contudo, o núcleo da Luz nunca é algo palpável. Alguém que está determinado a deixar-se seduzir apenas por uma lâmpada irá levar uma cabeçada antes de chegar à conclusão que é impossível atingir aquela satisfação absoluta. Hoje em dia, tanto as traças como as pessoas são mais facilmente seduzidas com luzes fluorescentes. Respostas baratas de conteúdo duvidoso. E cada vez mais se vê a decadência do homem desorientado pela incandescência de uma luz desorientadora. Enquanto o indivíduo não estiver aberto a uma variedade de luzes e manter-se numa zona de conforto entre elas, a turra será uma consequência predestinada.

No entanto, Maria da Luz não estava convencida de certo pela frase mal concebida do Tio. Mas o Tio, embora sábio, mantinha-se Homem de poucas palavras. O seu nariz mantinha-se encostado às páginas do livro e assim retomava a sua leitura.

- Continuo a não perceber, Tio - insistia Maria da Luz – alguns acabam por desistir, mas estão aqui algumas traças que persistem e vão cada vez com mais força!

O Tio solta finalmente um suspiro. O livro fecha-se com um estalo um pouco alto. É então que ele aborda a sobrinha com a mão esquerda encaixada levemente no seu ombro. Aproxima-se.

- Esses, infelizmente, são os ceguinhos que já não sabem melhor.

SANGUESSUGAS ou: o silêncio contragedor à mesa de jantar gera as piores conversas

Dá mais uma garfada. Olha novamente para o seu reflexo na faca. O nó na garganta tenebroso. Os suores, os apertos no estômago que mais pareciam úlceras vivas. Porque é que o silêncio que ela tanto estimava se virou contra ela? Um silêncio intimidador era uma das muitas experiências que nunca tinha vivido desde que deixou as comodidades do pântano. Foi a sua primeira refeição em casa do tio. Lembra-se dessa refeição com lamento. Lembra-se das sanguessugas. Porque é que referiu as sanguessugas?

Mas da mesma maneira que não existe uma não-imagem também não existe um não-sonoro. Aliás, o silêncio é o barulho que mais persegue o Homem. Não se pode manipular o silêncio. Antes pelo contrário, o silêncio manipula o seu redor. O silêncio enternecedor ao lado da pessoa que se ama cria um ambiente aconchegante. No entanto, o silêncio penetrante que endoidece o recluso é muitas vezes fatal. Mas, mais importante, o silêncio realça o subconsciente. Se estivesse nervoso por ir fazer um discurso, o silêncio alimentaria o meu nervosismo. Se estivesse deitado com a minha esposa, o silêncio torna-se numa cumplicidade de amantes. Felizmente, são casos que já não me perturbam desde que virei árvore.

Maria da Luz contemplava para a sua refeição esfriando. Tinha o seu tio do seu lado direito e a sua prima mais nova a mastigar silenciosamente à sua frente. Tentava olhar discretamente para as paredes, mas reparou que o tio não tinha qualquer relógio na casa inteira. O tempo não era para ali chamado naquela casa. As paredes cobriam-se de molduras velhas com retratos de memórias que não lhe diziam nada. Estava presa no tempo e no espaço. Mas houve uma ruptura no silêncio. Maria da Luz, imóvel, ainda contemplando a sua refeição dirige-se ao tio.

- Sabia que as sanguessugas têm 32 cérebros? – Disse com um tom desafinado
O tio abre os olhos perplexo, pousa os talheres e solta uma gargalhada sonora que faz com que Maria da Luz cruze as pernas de nervosismo. Não sabia que mais dizer. A sua vida sempre foi rodeada por pântano e a gargalhada do tio afundou todos os seus pensamentos. Até que o tio se esclareceu.

- Querida, isso é só um mito. Na realidade, as sanguessugas têm 32 gânglios nervosos que funcionam como núcleos cerebrais. - E ele continuou – Seria impossível qualquer sistema orgânico possuir cérebros que funcionassem em sintonia. Imagina a sanguessuga. Os seus cérebros necessitariam de comandar em conjunto: “ CHUPA… ou morre!”. No entanto, o trigésimo segundo iria sempre pensar: “Porquê?”. Para existir uma teoria é necessário haver sempre alguém que discorde. Dito isto, uma sociedade nunca será unida. Existem cérebros que puxam para a esquerda, outros para a direita, outros para a extrema-esquerda, outros para a extrema-direita e outros que não puxam de todo.

O tio esboçou um sorriso tapado no seu bigode farfalhudo mas Maria da Luz não conseguiu conter um “peço desculpa” e retomou a olhar para o prato até ter recebido permissão para se leventar.

PRÓLOGO ou: O pântano não é, sem dúvida, o sítio mais iluminado

Percorro mais uma vez a cidade, flutuando por cima do cinzento tépido da metrópole. Sou uma nuvem. Já fui gente, mas agora sou uma nuvem. Não existe maior estímulo do que o de saber. Quando se sabe, sente-se um alívio esclarecedor que cinge todo o corpo do pensador, acendendo um caminho iluminado em direcção a mais perguntas. E não existe nada mais desesperante do que encontrar a Verdade pois a Verdade é ópio do Homem. Quando alguém persegue a Verdade persegue com o intuito de encontrar a lâmpada. De se envolver na lâmpada. Aquela ideia de que tudo se vai tornar mais claro quando se acende. Mas todas as lâmpadas precisam de um interruptor. Interruptores são fáceis de encontrar. Estão por todo o lado. Olhamos para o lado e encontramos pregoeiros que adoram o som da sua própria voz; cartazes rasgados de slogans desajustados; fé distribuída em pequenas doses de cocaína e o filho da puta ao nosso lado no metro que simplesmente não consegue estar calado. O gerador desta cidade é claramente uma fonte de energia bastante poluente.

Infelizmente, o pântano é um nicho peculiarmente escuro. É um vazio enorme que percorre a humidade do ar e as lágrimas de Maria da Luz quando viu que o seu único interruptor se encontrava permanentemente inalcançável, jazida na sua cama, onde se encontrava nos últimos dias. Quando se tem dezassete anos e não se conhece mais ninguém para além da avó, o sentido perde-se. Quem estivesse nos arredores ouviria soluços longos e tenebrosos de uma infanta perdida. Contudo, ninguém passa por ali. Apenas o médico que esclareceu a Maria da Luz o que ela já sabia. O mesmo médico que levou o interruptor da jovem que se encontrava num labirinto existencial.
Maria da Luz não conheceu os pais. Morava num barracão isolado com a avó que acolheu-a com uma cama pequena, duas refeições quentes e todo o seu pouco conhecimento. E Maria da Luz absorvia tudo o que lhe era dito. Para além disso, o barracão tinha uma estante com livros, entre eles um atlas que Maria da Luz adorava ler durante tardes a fio. Até decorou as bandeiras de todos os países. Mas agora não tinha ninguém. Mas onde uma luz se apaga, outra acende-se. E daí, aparece uma luz pela porta do barracão. Era alto com um sobretudo claro que escondia o resto do corpo. Tinha um bigode saliente e bem aparado e uns olhos escuros e cerrados de todos os gases do pântano. Não disse muito, mas quando se diz que se conhece a sua avó e que tem um sítio para ela ficar, não é preciso dizer muito. Então, Maria da Luz saiu pela porta pela última vez e nunca mais pôs os pés no pântano. Poucos minutos depois descobriu que era o tio. A avó havia referido vagamente. Disse-lhe que tinha uma neta mais nova mas que nunca a vira e ela também não fez questão de saber mais. Pouco saberia que era com eles que iria permanecer.

E com isto já passaram cinco longos anos de adaptação no labirinto metropolitano. Contudo, sabendo que Maria da Luz teria mais uma lâmpada para lhe guiar o caminho alivio-me. E, só assim, desvaneço no ar e descanso em paz.