AVANT-GUARDE ou: com um martelo numa mão e uma foice na outra, fico sem mãos para fazer algo construtivo

As pessoas percorrem o limiar da existência à procura de um propósito. Significado. Raison d’être. Gostam de fugir de rótulos mas na realidade sentem-se realizadas quando são catalogadas com títulos confortáveis na consciência. Mas isto sou eu; gosto de contar histórias. A Clara estuda. O Tio é jornalista e colunista. Realiza, portanto, uma grande parte do seu trabalho a partir do conforto de casa. Eu sou um pombo historiador. E Maria da Luz entrou na idade adulta sem um propósito reconfortante onde se pudesse abotoar. Portanto, ao grande desgosto de seu Tio que mantinha uma miragem de sua sobrinha como uma réplica literata de sua pessoa, Maria da Luz acabou por arranjar um posto como empregada de mesa no café Avant-Guarde que pertencia ao vizinho do prédio ao lado.

Servir mesas e reabastecer a dose de cafeína a meio mundo infeliz não era motivo de orgulho mas a humildade de Maria da Luz incapacitava a jovem de se atrasar para o seu turno diurno. O senhor Pascal era devidamente rigoroso com os seus empregados tendo em conta que também se encontrava por detrás do balcão dia sim, dia não. Contudo, Maria da Luz partilhava sempre o balcão com um moço. Tinha sempre um sorriso cerrado estampado, vestindo-se em trapos, escondendo a magreza do resto do seu corpo. Mantinha-se barricado no seu lado do balcão mas lançava tentativas de olhares amigáveis a Maria da Luz. Mais tarde ficou a saber que se chamava Fausto. Personagem peculiar. Era capaz de embaciar as janelas do estabelecimento só com fôlegos. No entanto, no dia em que realmente conseguiu abordar a sua colega encheu-se o peito de ar e perguntou em bandos de eufemismos se não queria acompanhá-lo a uma reunião da JCP. Maria da Luz nunca teve uma forte opinião política e lembrava-se da discussão que teve com o Tio sobre sanguessugas, tendo a vontade de ser um cérebro que puxasse para algum lado fazendo com que aceitasse aquele malabarismo de palavras.

Maria da Luz passou a semana seguinte de cama, adoecida de seja lá o que for. Febres de qualquer coisa. E enquanto ela se mantinha coberta de lençóis, o Tio distribuía a sua dieta de sopa e chá de gengibre. “Benefícios de trabalhar em casa” tornou-se a citação predilecta da semana. Maria da Luz gemia de desconforto. Não pelas dores nos abdominais, mas sabendo que estava de baixa e dispensada até que estivesse melhor. Mal o Tio se aproximava com mais um tabuleiro de sopa, Maria da Luz não resistiu em abordar o Tio:

- Tio, porque é que não somos mais acérrimos nos princípios Marxistas? – e continuou –Eu faço parte do proletariado e agora vejo como as minhas necessidades não são cumpridas e que deveríamos ser mais incentivados para uma maior produção a partir dum exercitação maior do Poder. Eu trabalho imenso e acho que devia receber o mesmo que outro trabalhador qualquer, tendo em conta que contribuímos todos para o mesmo.

Maria da Luz fez uma pausa para relembrar se o seu discurso estava tal e qual tinha praticado. Mas o Tio acabou por intervir antes que ela pudesse mencionar os ataques capitalistas que punham as pequenas e médias empresas umas contra as outras.

- Acho que devias ver uma coisa, querida.

Deu permissão a Maria da Luz para sair da cama pela primeira vez desde que tinha adoecido. Levou-a à janela e apontou para o apartamento que se escondia por detrás da árvore que espreitava o alpendre. Apontava exactamente para o apartamento do Senhor Pascal. Ela conseguiu facilmente reconhecer a cara pastosa do patrão deitada numa banheira cheia de água multicolorida.

- O que tu vês faz parte da rotina do Senhor Pascal. Todos os dias que ele não ajuda no balcão resultam em mais horas de trabalho para vocês. É também menos capital que entra no estabelecimento.

Maria da Luz evitava mostrar uma expressão incrédula à frente do Tio. Mostrar ponto fraco perante o Tio rebaixaria a única crença política que alguma vez conheceu.

- Querida, eu não estou a dizer que estás errada. Mas mentalizaram-te com princípios utópicos sem te dizerem algo muito importante: as pessoas só têm o seu melhor interesse em mente. E enquanto isso for, terás de trabalhar neste ambiente capitalista para que, um dia, possas engordar e tomar banhos perfumados como o Senhor Pascal.

E enquanto o Tio divagava em relação aos defeitos do Manifesto, Maria da Luz só pensava como o seu colega malabarista ficou sozinho no balcão a servir meio mundo infeliz. Pobre Fausto.

1 comentário:

  1. De políticas gosto pouco de falar, sou como os que fogem de "rótulos" mas a sério...Já me interroguei como a Maria da Luz. Porque a ideia dos sanguessugas me está muito presente (cada um a puxar para seu lado - no final todos iguais), prefiro acreditar na minha realidade, ainda que incompleta, mais verdadeira que qualquer "afiliação". Devemos lutar sim, mas não compactuar com utopias que nos ceguem.

    Gostei muito de como escreveste este episódio, como sempre peculiar e bem escrito! Fico à espera de mais. :)

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