SANGUESSUGAS ou: o silêncio contragedor à mesa de jantar gera as piores conversas

Dá mais uma garfada. Olha novamente para o seu reflexo na faca. O nó na garganta tenebroso. Os suores, os apertos no estômago que mais pareciam úlceras vivas. Porque é que o silêncio que ela tanto estimava se virou contra ela? Um silêncio intimidador era uma das muitas experiências que nunca tinha vivido desde que deixou as comodidades do pântano. Foi a sua primeira refeição em casa do tio. Lembra-se dessa refeição com lamento. Lembra-se das sanguessugas. Porque é que referiu as sanguessugas?

Mas da mesma maneira que não existe uma não-imagem também não existe um não-sonoro. Aliás, o silêncio é o barulho que mais persegue o Homem. Não se pode manipular o silêncio. Antes pelo contrário, o silêncio manipula o seu redor. O silêncio enternecedor ao lado da pessoa que se ama cria um ambiente aconchegante. No entanto, o silêncio penetrante que endoidece o recluso é muitas vezes fatal. Mas, mais importante, o silêncio realça o subconsciente. Se estivesse nervoso por ir fazer um discurso, o silêncio alimentaria o meu nervosismo. Se estivesse deitado com a minha esposa, o silêncio torna-se numa cumplicidade de amantes. Felizmente, são casos que já não me perturbam desde que virei árvore.

Maria da Luz contemplava para a sua refeição esfriando. Tinha o seu tio do seu lado direito e a sua prima mais nova a mastigar silenciosamente à sua frente. Tentava olhar discretamente para as paredes, mas reparou que o tio não tinha qualquer relógio na casa inteira. O tempo não era para ali chamado naquela casa. As paredes cobriam-se de molduras velhas com retratos de memórias que não lhe diziam nada. Estava presa no tempo e no espaço. Mas houve uma ruptura no silêncio. Maria da Luz, imóvel, ainda contemplando a sua refeição dirige-se ao tio.

- Sabia que as sanguessugas têm 32 cérebros? – Disse com um tom desafinado
O tio abre os olhos perplexo, pousa os talheres e solta uma gargalhada sonora que faz com que Maria da Luz cruze as pernas de nervosismo. Não sabia que mais dizer. A sua vida sempre foi rodeada por pântano e a gargalhada do tio afundou todos os seus pensamentos. Até que o tio se esclareceu.

- Querida, isso é só um mito. Na realidade, as sanguessugas têm 32 gânglios nervosos que funcionam como núcleos cerebrais. - E ele continuou – Seria impossível qualquer sistema orgânico possuir cérebros que funcionassem em sintonia. Imagina a sanguessuga. Os seus cérebros necessitariam de comandar em conjunto: “ CHUPA… ou morre!”. No entanto, o trigésimo segundo iria sempre pensar: “Porquê?”. Para existir uma teoria é necessário haver sempre alguém que discorde. Dito isto, uma sociedade nunca será unida. Existem cérebros que puxam para a esquerda, outros para a direita, outros para a extrema-esquerda, outros para a extrema-direita e outros que não puxam de todo.

O tio esboçou um sorriso tapado no seu bigode farfalhudo mas Maria da Luz não conseguiu conter um “peço desculpa” e retomou a olhar para o prato até ter recebido permissão para se leventar.

1 comentário:

  1. "(...)o silêncio é o barulho que mais persegue o Homem. Não se pode manipular o silêncio. Antes pelo contrário, o silêncio manipula o seu redor"

    Adorei esta passagem, digo, por experiência própria, tens toda a razão. O silêncio sufoca as palavras.

    Faz todo o sentido! adorei e vou continuar a ler..o teu blog é inspirador!

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