TRAÇAS ou: a ambiguidade da lâmpada é estranha e sabe a pouco

A esperança de vida de uma beata é bastante efémera (se é que podemos considerar “efémera” um adjectivo quantitativo). Mas é isso que sou. Uma beata. Nos meus últimos minutos de vida, o que é que eu vejo? Vejo o Tio aconchegado na sua poltrona a escapar mais um cigarro para a boca enquanto relê Virgílio. A Clara instala-se no chão, deitada, vidrada ao televisor e Maria da Luz encontra-se ao lado do Tio perplexa com o candeeiro que iluminava a vista do Tio. É um candeeiro sem abajur que o Tio mantinha sempre ao lado da poltrona para acompanhar o seu ritual de leitura.

A perplexidade de Maria da Luz veio com a chegada dos primeiros calores do Verão que - como costuma fazer todos anos – trazia consigo traças gordas que se encantam com o deslumbre do encadeamento do candeeiro sem abajur. Maria da Luz assistia àquele espectáculo tentando com os seus dedos magros alcançar uma das traças.

- Deixa as traças, querida – murmurava o Tio, não retirando o seu nariz das páginas do livro.

- Mas eu não compreendo – exclama Maria da Luz – elas seguem a luz, cabeceiam a lâmpada e retomam a fazer o mesmo.

- Acredita, querida, toda a gente faz isso.

E o Tio, mais uma vez, tinha razão. Eu sou uma beata mas sei. Uma pessoa estará sempre determinada a seguir uma ideia, um pensamento. É cativado pela luz da lâmpada. Contudo, o núcleo da Luz nunca é algo palpável. Alguém que está determinado a deixar-se seduzir apenas por uma lâmpada irá levar uma cabeçada antes de chegar à conclusão que é impossível atingir aquela satisfação absoluta. Hoje em dia, tanto as traças como as pessoas são mais facilmente seduzidas com luzes fluorescentes. Respostas baratas de conteúdo duvidoso. E cada vez mais se vê a decadência do homem desorientado pela incandescência de uma luz desorientadora. Enquanto o indivíduo não estiver aberto a uma variedade de luzes e manter-se numa zona de conforto entre elas, a turra será uma consequência predestinada.

No entanto, Maria da Luz não estava convencida de certo pela frase mal concebida do Tio. Mas o Tio, embora sábio, mantinha-se Homem de poucas palavras. O seu nariz mantinha-se encostado às páginas do livro e assim retomava a sua leitura.

- Continuo a não perceber, Tio - insistia Maria da Luz – alguns acabam por desistir, mas estão aqui algumas traças que persistem e vão cada vez com mais força!

O Tio solta finalmente um suspiro. O livro fecha-se com um estalo um pouco alto. É então que ele aborda a sobrinha com a mão esquerda encaixada levemente no seu ombro. Aproxima-se.

- Esses, infelizmente, são os ceguinhos que já não sabem melhor.

3 comentários:

  1. Realmente a teimosia humnana faz-nos ser, muitas vezes, cegos que vêm.. Simplesmente queremos fazer aquilo; seguimos em frente, insistimos sempre, até que uma réstia de bom senso ou a dor das "turras" que demos, nos façam ceder, depois de muito sermos ludibriados com "fogo de vista" e nada mais...
    Devemos tentar sempre estar abertos às "luzes" da vida. Há sempre outra luz, no fundo de outro túnel =)

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  2. ler-te é uma verdadeira aventura pois cada palavra que escreves transporta um enorme significado e um leque enorme de caminhos por onde ir. gosto, gosto imenso! gosto especialmente desta interligação de ''textos''.. muito bom, tiago :)
    beijo

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  3. lembro-me de estar sentado contigo e dizeres alguma coisa sobre pirilampos e como deviamos ser mais como eles porque eles tinham luz própria. epa, eu olhei um bocado de lado mas agora já percebo... o blog tá fixe, sim senhor.

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